A Origem da Central Paracósmica - Capitulo 2
- Malp Dragon
- 16 de jan.
- 6 min de leitura
Vontade Negada

Quase fui atingido na cabeça por algo que despencou da árvore.
Não que um galho pudesse me machucar, mas o que realmente chamou minha atenção foi o motivo dos pássaros terem voado assustados. Vozes conhecidas chamavam por mim enquanto eu aproveitava a sombra da árvore para ficar deitado, relembrando a situação de mais cedo.
— Pai! — chamou Gina, surgindo por trás da árvore. — Somos nós! Não ataque se ainda estiver bravo!
Admito que isso me fez rir. Mesmo em momentos como aquele, eu nunca conseguia manter a seriedade por muito tempo. Não com essas duas, que viveram comigo por tanto tempo.
— Vocês estão seguras — disse, sem me levantar. — Não atacaria vocês por algo assim.
As duas surgiram, cada uma de um lado da árvore. Apesar de tão diferentes entre si — e de mim —, compartilhavam os mesmos olhos brilhantes, cor de sangue, que eu também carregava. Pararam ao meu lado, mexendo nas mãos e trocando olhares silenciosos.
— Podem deitar também — ofereci, imaginando que ainda estavam acanhadas pela forma como saí da base.
A cratera na montanha próxima, resultado da minha explosão de raiva, era intimidadora até para mim. Mesmo assim, as duas aceitaram e se deitaram ao meu redor, acompanhando-me na contemplação das folhas.
Ficamos assim por um tempo. Nenhuma palavra dita. O único som era o vento que passava pelos campos e os pássaros que voltaram para a árvore. Se algum deles resolvesse jogar uma bomba em nós, viraria frango a passarinho.
Eu devia estar emanando raiva, pois chegou ao ponto de Myu, a mais nova, exclamar bem alto:
— Isso não é justo! Eles não podem fazer isso com você!
Olhei para ela, surpreso. Não esperava que fosse Myu a perder a paciência primeiro. Suspirei, mantendo o sorriso da melhor forma que conseguia.
— Mesmo se desconsiderar que isso foi uma decisão dos sete líderes, perderíamos na votação individual — afaguei os cabelos negros e cacheados dela enquanto falava. Era uma tentativa de acalmá-la, mas também servia para mim. — Não tínhamos chance sendo a minoria.
— E eles esperam que a gente aceite isso assim? — Gina, a mais velha, se sentou, ajeitando os grandes fones de ouvido no pescoço de forma que os longos cabelos alaranjados não escapassem do arco. — Todo mundo sabe que você é um dos piores para esse posto!
— Isso doeu um pouco — ri, colocando a mão no peito em um gesto exagerado, mas sem o drama típico de nossas interações. Voltei a mão para trás da cabeça antes de continuar: — Concordo, mas não precisava dizer assim, né?
— A gente devia sair do grupo por causa disso! — Gina desviou o olhar para a montanha. — Ir viver em outro planeta ou sei lá. Não somos nós que precisamos deles!
— Infelizmente, esse é o ponto — ajeitei-me para sentar, deitando a cabeça de Myu nas minhas pernas para continuar o cafuné. — Esse mundo estaria perdido sem gente como nós. Ele já está indo pro escambau sem as pessoas terem que lidar com as mesmas merdas que nós.
Elevei o olhar para a lua no céu diurno. Visível, mas quase oculta pela imensidão azul. Saber que lá estava a base que já considerei como minha casa, onde conheci as duas que agora são minhas filhas, era sempre reconfortante. Era. Nesse momento, lembrar deles votando contra minha vontade me irritava.
Pensei que me conheciam, ou que pelo menos respeitariam minhas decisões. Como estava enganado. Ver todas aquelas mãos levantadas seria difícil de esquecer. Não havia se passado nem um dia, mas eu sentia que esse seria o caso.
— Por que a gente não faz o que você sempre falou então? — exclamou Gina, levantando-se. — Vamos revelar ao mundo como usar magia e deixar eles se destruírem enquanto aprendem a viver juntos com isso!
Minha tentativa de segurar o riso foi tão falha que engasguei. Após alguns segundos sem saber se ria ou tossia — quase desmaiando de falta de ar no processo — enchi os pulmões diversas vezes até controlar meu corpo mais uma vez.
— Ai, Gi. É por isso que eu amo vocês duas — suspirei, estendendo minha aura até a cabeça dela para dar-lhe um cafuné também. — Eu ainda quero fazer isso, mas prefiro arranjar um lugar seguro para seus avós antes e para o resto da família também. Sem falar que todo o grupo estaria lá para nos impedir, e ainda não sou forte o suficiente para vencer deles.
— E nem ela conseguiu passar as proteções do Mechion — Myu comentou, tapando a boca rapidamente.
— “Conseguiu”? — O uso do pretérito perfeito me chamou a atenção. Assim como eu, Myu tende a ser precisa com as palavras, apesar de não sofrer os problemas de embaralhar a língua que eu tenho às vezes. Entendendo o que ela queria dizer, encarei a mais velha com olhos brilhando. — Você tentou?
— Tentei… — admitiu Gina, sem olhar para mim. — Ele é muito bom em proteger a internet.
Usei minha aura para puxá-la, fazendo-a se sentar do meu lado mais uma vez. Com um sorriso, beijei o topo de sua cabeça enquanto continuei o carinho.
— A internet é parte da mente dele — expliquei, começando a pensar no assunto. — Ou seria do corpo, já que todos os componentes dela vêm dele? — Balancei a cabeça, jogando os questionamentos para longe. — Deixa pra lá. O que importa é que você tentou. Isso mostra o quanto vocês estão do meu lado.
— Claro que estamos do seu lado! — Gina se virou tão rápido que meus dedos se enroscaram em seus cabelos, soltando algumas mechas do fone. Ela não ligou e continuou: — Você é nosso pai! Você cuidou de nós quando ninguém mais quis!
— Sim! — concordou Myu, abraçando-me com força. — Só você cuidou de nós, pai. É claro que estamos do seu lado!
Gina se juntou ao abraço, e eu sorri, abraçando-as de volta.
— Meninas. Já falei que amo vocês?
— Já, mas pode repetir — Gina respondeu.
Todos rimos, e terminei o abraço com um beijo na cabeça de cada uma. Decidindo que já era hora de encarar os traíras, levantei-me, virando com os braços estendidos para elas.
— Talvez não seja esse ano que vamos jogar esse mundo no pandemônio definitivo, mas isso não importa enquanto estivermos juntos, certo?
— Certo! — ambas disseram, aceitando minha ajuda para se levantar.
— Então bora ver o que aqueles idiotas…
O chão tremeu com um impacto violento, assustando os pássaros pela terceira vez naquele dia. A força do golpe era inconfundível: um ataque. Coloquei-me entre minhas filhas e a origem do impacto, preparado para lutar. Quando a poeira começou a baixar, o que vi me pegou de surpresa.
Do meio da nuvem de terra, surgiu um rosto muito familiar. Cabelos entre o mel e o ouro, olhos brilhantes como sangue e óculos de voo que ele logo abaixou para tossir o pó para fora dos pulmões. Após algumas batidas pelo corpo para se limpar, meu rosto me encarou com um sorriso desconcertado.
— Admito que essa não foi minha melhor aterrissagem.
Suspirei, deixando a carranca de mau humor desaparecer e sorrindo para a visita inesperada.
— Pelo menos você aterrissou com os pés dessa vez — disse, encarando o meu alternativo de outra realidade. — O que faz aqui, Dragon?
— Procurando você, é claro — ele riu, reparando nas meninas atrás de mim e dando um oi. — E aí, meninas. Que tal abraçar seu tio favorito?
— Tio Dragon! — Gina correu e o abraçou.
Myu também foi até ele, mas a passos curtos.
Dragon deixou sua cauda vermelha balançar como um cachorrinho feliz, deixando claro seu humor. Ele então me encarou, os chifres que pareciam um par de óculos sobre a testa destacando ainda mais os olhos brilhantes. Quando falou, soube que o dia não seria simples.
— Tá livre para uma reunião na Julgamento?
Trocando olhares com minhas filhas, pensei nos prós e contras de ir para a reunião em vez de ir para a base da lua. Foi uma escolha fácil.
Com o segundo maior sorriso do dia, respondi:
— Bora lá.

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